Não sei mais rir, diz alagoana que sobreviveu a ataque alemão na 2ª Guerra

Josué Seixas

MACEIÓ Os olhos atentos e a voz pausada da alagoana Walderez Moura Cavalcante, 81, não deixam transparecer a memória da infância marcada pela Segunda Guerra Mundial. Ela diz ainda se lembrar do apito, da fumaça e da caixa de madeira que guardava leite condensado na qual se apoiou quando ficou no mar à deriva, aos quatro anos de idade.

No dia 17 de agosto de 1942, o navio Itagiba, em que ela e o pai estavam, foi torpedeado pelo submarino alemão U-507 no litoral baiano, próximo a Morro de São Paulo.  O episódio repercutiu no país. Pouco tempo depois, o Brasil entrava na Segunda Guerra Mundial.

Reprodução do navio Itagiba, foi torpedeado pelo submarino alemão U-507 no litoral baiano, próximo a Morro de São Paulo – Crédito: Divulgação

Walderez diz que pouco sorri desde o episódio, mesmo após sete décadas. “Eu sempre digo que não sei mais rir. Há uns 15 anos eu não conseguia falar sobre essa história, nem relembrar, só chorava”.

A menina Walderez viajava com o pai Otávio, do Rio de Janeiro para Maceió. Conta que não conseguiu perceber muito do bombardeio, só o desespero do pai, as instruções quando foi jogada ao mar. Diz se recordar da demora do resgate e das próprias mãozinhas segurando a caixa com todas as forças, os destroços da embarcação.

A sobrevivente conta que estava no navio e, ao ser atacado, correram para uma baleeira (bote salva-vidas). “Deixaram uma caixa de leite condensado vazia dentro dessa baleeira. O mastro do navio, com o bombardeio, partiu a baleeira ao meio. Só que, antes de isso acontecer, alguém me sentou dentro do caixote, disse: ‘Segure. Não solte’, e me jogou ao mar. Não lembro mais de coisa alguma”.

Walderez, resgatada, com o pai no hospital

Além do Itagiba, o navio Arará, que estava logo atrás, também foi bombardeado. O resgate veio horas depois, com outro barco, o Aragipe, embarcação grande que recolheu os sobreviventes. No meio deles estava Otávio, pai de Walderez.

Até ali, ninguém sabia onde a menina estava. ‘Me joguem na água’, disse Otávio, ‘porque não quero sobreviver’. Motivadas pelo desespero do pai, as buscas continuaram.

“Foi quando avistaram, muito longe, uma coisa boiando e não sabiam o que era. Foram atrás e, quando chegaram lá, surpresa: eu estava dentro da caixa de leite condensado”.

Demorou muito, entretanto, para que pai e filha se encontrassem. Nenhum sabia que o outro estava vivo e talvez continuasse sem saber, não fosse uma fratura sofrida por Walderez, quando caiu de uma escada na casa do prefeito de Valença-BA.

“Quebrei o braço e não havia tratamento na cidade. Quando fui ao hospital português, lá estava o meu pai. Ali, sim, eu fiquei feliz. Meu pai, para mim, era tudo na vida. Meu pai era meu porto seguro, era tudo o que pudesse imaginar”.

Jornal da época registra ataque e estampa foto de Walderez criança, à direita, com uma freira

Walderez voltou para Maceió um pouco depois, e o pai seguiu em tratamento. Dentro da casa da família Cavalcante, o assunto se tornou proibido. “A recomendação dos médicos era de que não falasse. Eu fui proibida de falar. Na minha casa, ninguém falava. Ninguém chegava e conversava. Na época, era assim: conversa de mais velho, criança não escuta. Se a conversa era aqui, a gente passava por lá”.

Nem os colegas da faculdade que cursou, de psicologia, nem os amigos do trabalho no INSS souberam do episódio.
“Por causa de um trabalho [de faculdade] da minha sobrinha, comecei a contar. E daí comecei a desenrolar a coisa, comecei a falar e, de falar, a coisa foi melhorando. Não é que tenha passado. Não passou. Só melhorou bastante”.

Dez anos depois, ela salvou-se de mais um acidente quando a família foi morar no Rio de Janeiro. Algo a impediu de ir com a mãe, um irmão e uma irmã para Anchieta, no dia 4 de março de 1952. Foram 119 mortos e aproximadamente 250 feridos no acidente ferroviário. A mãe e o irmão morreram; a irmã ficou em estado grave no hospital Getúlio Vargas.

“Meu propósito… Não sei. É muito difícil. Por que Deus lhe coloca uma situação, lhe livra de algo que não temos pelo que chorar, porque ninguém vai atender, ninguém a pedir socorro, e de repente lhe devolve a vida? Por quê? Não sei. Dá para entender o que aconteceu, se acreditar que tem algo superior que traça a sua vida. Eu acredito. Acredito muito em Deus”.

A sobrevivente da tragédia, hoje, com 81 anos, em Maceió – Crédito: Josué Seixas/Folhapress

Ainda assim, seguiu com a vida. Atuou como psicóloga até se aposentar. Casou-se com Genésio, falecido há 13 anos, e criou três filhas.

Fica quase o dia inteiro fora de casa, entre atividades do coral, saídas com a filha e com as amigas. Setenta anos depois, chegou a visitar a praia onde foi resgatada na infância e que teve papel decisivo na entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Mas nunca mais entrou no mar.