Amapá inicia temporada do marabaixo, a dança dos escravos que virou marca do estado

Fernanda Canofre
MACAPÁ

Todo sábado de aleluia amanhece com fogos de artifício no céu da capital do Amapá e cantos de louvor à Santíssima Trindade, vindos do bairro da Favela. À tarde, ressoam os tambores, seguidos das vozes de cantadeiras que puxam versos dos ladrões –os cantos tradicionais que roubam histórias do cotidiano para colocar em música.

É a abertura do ciclo de marabaixo, mistura de dança, canto e expressão de fé, que começa na Semana Santa e segue até Corpus Christi.

A origem exata da tradição é desconhecida. No Amapá, ela chegou com os negros escravizados trazidos da África no século 18 para trabalhar na construção do Forte de São José de Macapá, em frente ao rio Amazonas.

Dizem que o passo curto e arrastando os pés, típico nas danças das marabaixeiras, lembra a dificuldade dos antepassados para se movimentar dentro dos navios onde eram mantidos acorrentados. E que o canto de lamento e o nome vêm de “mar abaixo” lembrando quem morria na viagem e era jogado ao mar.

“Os negros escravizados passaram a fazer promessas aos santos que consagravam, e quando a graça era alcançada se fazia um marabaixo. A herança foi deixada de pai para filho, e está associada ao fazer religioso do catolicismo popular em louvor a diversos santos padroeiros do Amapá”, conta Danniela Ramos, 40, presidente da Associação Cultural Marabaixo do Laguinho.

O bisavô dela, Julião Ramos, virou uma das figuras mais importantes dessa cultura. Nos anos 1940, quando o Amapá foi transformado em território federal por um decreto de Getúlio Vargas, a população negra que morava na parte central da cidade, em frente ao rio Amazonas, foi removida, dando origem a dois novos bairros: o Laguinho e a Favela.

DIVISÃO

Para o Laguinho, seguiu Julião. Para a Favela, Gertrudes Saturnino. Descendentes dos escravizados, cada um em seu bairro, mesmo divididos, os dois continuaram tocando o ciclo de marabaixo.

Danniela conta que cresceu em meio às caixas de marabaixo (os tambores), ouvindo ladrões e assistindo às rodas que eram montadas no pátio da casa da avó, Biló, filha de Julião. Aos oito anos, ela começou a cantar. Aos 13, criou um grupo para se apresentar na mostra da escola, mesmo enfrentando caras feias e piadas dizendo que a tradição era coisa “de preto”, “de velho”, “de macumbeiro”.

“Eu lembro que o marabaixo saía pelas ruas e as crianças iam à frente do cortejo. Meus primos se escondiam, tinham vergonha, porque quando chegavam na escola todo mundo ficava encarnando. Eu não. Eu sempre fui de ir à frente para carregar a bandeira do santo”, diz ela.

A maior referência viva do marabaixo hoje é Tia Zefa, 103. Josefa Lina da Silva e a família  estavam entre as pessoas que tiveram de escolher entre a Favela e o Laguinho quando Janary Gentil Nunes chegou como interventor do Amapá.

Ela aprendeu a cultura no berço. Em casa, só o pai não gostava da dança. Tia Zefa, quando lembra daquela época, usa sempre versos de ladrões para contar.

“‘Onde tu vai rapaz’, foi quando veio Janary pra cá. Não tinha governador, não tinha água encanada, não tinha luz. A gente tirava água do poço, trabalho era na roça. Ele veio para ser o governador e [o ladrão] diz assim: onde tu vai, rapaz?/por esse mundo sozinho/vou fazer minha morada lá nos campos do Laguinho”, diz ela, que vive no bairro desde então.

Os antepassados de Elisia Congó, 54, foram traficados do Congo para construir a fortaleza que segue às margens do Amazonas na capital. O avô, conhecido como tio Congó, famoso tocador de caixa de marabaixo e compositor de ladrões, também teve que sair de casa quando o Amapá virou território. Ele e a família seguiram então para a Favela.

Depois de uma graça, diz ela, o avô começou os festejos no bairro em homenagem à Santíssima Trindade dos Inocentes. Elisia acredita que se curou de uma catapora graças à fé da família. Hoje, ela é presidente e fundadora da Associação Cultural Raízes da Favela Dica Congó e cantadeira.

“[Sinto] alegria, felicidade [quando canto e danço] por estar representando meus ancestrais que resistiram a tudo e a todos e não deixaram essa cultura morrer.”

Na inauguração do novo aeroporto de Macapá, no dia 12 de abril, Elisia entregou ao presidente Jair Bolsonaro (PSL) uma boneca marabaixeira. Ela e outros grupos fizeram uma apresentação de marabaixo no evento, onde entoaram músicas como “Rosa Branca Açucena”, um dos hinos da tradição.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que é judeu, disse à Folha que também costuma dançar o marabaixo. “É nossa tradição e nossas origens.”

Em novembro de 2018, o marabaixo foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil, por votação unânime do Conselho Consultivo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Se juntou ao carimbó do vizinho Pará, à roda de capoeira, ao frevo e à arte Kusiwa, dos povos indígenas Wajãpi, do próprio Amapá.