Os carroceiros de água da terra de Zé Ramalho, na Paraíba
Fabiano Maisonnave
BREJO DO CRUZ (PB) – São 2h50 da manhã quando Francinaldo de Resende, o Naldo da Água, chega ao poço. Montado sobre o cilindro de água que faz as vezes de charrete, conduz duas carroças-pipa —uma vem a reboque. A terceira chegaria um pouco mais tarde, sob responsabilidade do filho Jeanderson, 18. Ele ajuda o pai desde os 10 anos.
Perto do centro da cidade, o cenário destoa da região. Aos pés de um enorme maciço rochoso, o poço fica sob duas grandes copas de árvore, de tamanho raro no semiárido. Ao lado, o prédio fantasma de uma usina de algodão desativada em 1983.
No pátio escuro e vazio, Naldo liga o motor que bombeia a água até a caixa, nos fundos da usina termelétrica desativada.
Aos poucos, outras carroças-pipa chegam, num total de oito. Alguns conversam, outros aproveitam o resto da madrugada para dormir sobre a tampa de cimento de um cacimbão desativado.
Há também os moradores que buscam pequenas quantidades de água, armazenadas em vários tipos de recipientes e equilibradas sobre motos e carrinhos de mão.
São quase 5h quando a caixa finalmente se enche. Cristalina, inodora e jorrando há décadas, a água é uma exceção entre os poços da região, geralmente salobros e de vida curta. De tão limpa, os brejo-cruzenses a bebem sem tratamento.
Quase sagrado, o local foi imortalizado pelos versos de Zé Ramalho, cujo nome emoldura os portais de entrada de Brejo do Cruz, a 385 km de João Pessoa e com pouco mais de 14 mil almas.
“Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei”, canta o filho mais ilustre, na canção “Avohai”. A cidade não tem relação com a música “Brejo da Cruz”, de Chico Buarque.
Em gestos silenciosos e treinados, Naldo posiciona as carroças, pega a mangueira e enche os três tanques, num total de 1.500 litros. Depois, parte de volta para a sua vizinhança, na saída da cidade. No caminho, para na feira e pega frutas e legumes descartados, a recompensa dos burros no final da jornada.
Cada balde de 20 litros é vendido a R$ 1. No dia em que a reportagem o acompanhou, vendeu 1.300 litros, um faturamento de R$ 65. É a única renda do carroceiro, com a qual criou seus cinco filhos.
Os clientes se dividem entre mensais e esporádicos. A maioria compra fiado. A principal atividade econômica é a das redeiras, especializadas em fazer os babados para fábricas da região. Recebem R$ 4 por rede, trabalho artesanal, feito nas calçadas, que leva duas horas cada uma.
Naldo guarda para si cem litros por dia, já que a água encanada só chega à sua casa duas vezes por semana.
Algumas vezes nem isso. Em dezembro, as torneiras secaram, e Naldo passou a chegar às 22h ao poço por causa da fila maior. Quando conseguia encher o tanque, já eram 4h da madrugada.
O carroceiro está a dois anos de se aposentar, mas não pensa em parar com o negócio. “Gosto dessa lutinha”, diz baixinho, num tom de voz quase inaudível.
Sobre o que gostaria de resolver em Brejo do Cruz, o carroceiro não titubeia: água. A cidade é abastecida via aqueduto pelo rio Piranhas, que será perenizado com a transposição do rio São Francisco —o Eixo Norte deve ser inaugurado no segundo semestre de 2018.
Cansado de ouvir promessas, Naldo duvida que o reforço do Velho Chico chegará a Brejo. Por outro lado, acredita que, mesmo se ocorrer, a cidade continuará preferindo a água cristalina do poço.
“Aqui o povo usa só a nossa água pra cozinhar e beber”, diz. “Ninguém toma outra, não”.