O biólogo de Manaus que incorpora Uýra, uma drag amazônica

Luana Carvalho, de Manaus

Rodeado de garrafas pets e sacos plásticos, Uýra Sodoma posa para mais um ensaio fotográfico em um dos igarapés –pequenos cursos de água– poluídos que cortam a cidade de Manaus. As folhas na cabeça simbolizam a floresta. As conchas nos olhos fazem referência aos orixás. A tinta preta pelo corpo, em textura que lembra petróleo, completam o visual.

No ensaio ‘mil mortos’, Uýra quer chamar atenção para a poluição dos cursos d’água que cortam Manaus – Matheus Belém/Divulgação

As fotos servem de protesto para alertar sobre a poluição das águas. Em outro momento, com o rosto mais colorido, Uýra atrai olhares durante um festival voltado ao público LGBT, no centro. “Nos gritam ‘veado’, nos gritam ‘machuda’, nos gritam travesti. A palavra é o primeiro murro do agressor. Por que se ofender se ele te chamou do que tu é? Se orgulha, desarma ele!”, grita aos jovens ao redor. A performance foi filmada e compartilhada no Youtube por uma das espectadoras.

O biólogo Emerson Pontes, 27, é quem dá vida à Uýra, uma drag queen amazônica ou ‘entidade drag da floresta’, como faz questão de chamar.

As saias que Uýra usa são feitas com tecidos de sombrinhas encontradas nas ruas – Matheus Belém/Divulgação

Tudo começou em novembro de 2015, conta ele, quando sofreu uma agressão física. Com cílios postiços, lápis nos olhos, boca pintada e short, ele voltava pra casa de ônibus e sentou-se seis cadeiras a frente de um grupo de homens, sem imaginar o que eles fariam depois.

No momento em que descia no ponto próximo à casa dele, na zona leste de Manaus, recebeu um murro na nuca que o empurrou pra fora do veículo. “O ônibus foi embora, só enxerguei os vultos. Tentava entender o porquê daquilo. Enquanto tocava a lesão, senti o sangue saindo de um furo provavelmente causado por um anel”, relembra.

O ferimento foi sobre as vértebras responsáveis pela sustentação do crânio e movimentos da cabeça. Revoltado com a violência gratuita, ele resolveu encarar de frente o preconceito.

Pelo menos duas vezes ao mês, ele encarna a personagem Uýra e se apresenta em eventos, universidades e praças, sempre levantando bandeiras de causas sociais.

Emerson se inspira no grafite, em outras performers, no folclore e cantoras brasileiras – Keila Serruya/Folhapress

Quando não está na pele de Uýra, Emerson atua como arte-educador nas comunidades ribeirinhas amazônicas, liderando um projeto de incentivo à leitura e escrita com jovens de três comunidades no Amazonas.

TRANSFORMAÇÃO

Emerson passou a confeccionar roupas com plantas, trepadeiras diversas como amor-agarradinho e melão-de-São Caetano, entre outros cipós, capins e palmeiras. Com a técnica que adquiriu no mestrado em ecologia, concluído no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), ele retira o material do quintal da casa onde mora e após as apresentações, devolve ao mesmo local para decomposição.

A ‘montação’ inteira, incluindo maquiagem, figurino e peruca de plantas, demanda no mínimo duas horas. Para amarrar as plantas no corpo, Uýra conta com a ajuda de amigos. As saias são feitas com tecidos de guarda-chuvas encontradas nas ruas de Manaus.

Nas ruas, Uýra já foi chamada de mulher samambaia, demônio, gaia e curupira – Lúcio Silva/Folhapress

As inspirações vem de todas as partes: do grafite, de outras performers, do folclore e de cantoras brasileiras como Linn da Quebrada, Dona Onete, Elza Soares, Pablo Vittar e Raquel Virgínia, vocalista transexual de “As baianas e a cozinha mineira”.

Enquanto caminha entre as pessoas, a drag amazônica já foi chamada de árvore andante, mulher samambaia, curupira e até de demônio, conta. “Teve uma vez que uma criança apontou para mim e gritou ‘olha mamãe, uma palhacinha’. Prefiro essa lembrança”.