Memórias sensoriais de historiador cego viram livro no interior de São Paulo

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POR MARCELO TOLEDO, EM RIBEIRÃO PRETO

Ele enxergou metade do tempo que viveu. A outra metade, apenas sentiu. Mas não ter visto não o impediu de relatar a cidade, cujo passado ajudou a desvendar, em seus textos.

As memórias sensoriais do historiador francano José Chiachiri Filho (1945-2015), deficiente visual desde o início dos anos 80, foram transformadas em livro por sua família. Nos textos, descrevia locais como se neles estivesse, em geral com o objetivo de fazer com que as raízes francanas não se perdessem.

Afirmava que uma pessoa sem memória “não consegue saber nem onde está” e que uma “cidade que não conhece seu passado não consegue se desenvolver”. Chiachiri sofreu descolamento de retina aos 35 anos, quando era vice-prefeito da cidade.

O historiador José Chiachiri Filho, de Franca - Arquivo Pessoal
O historiador José Chiachiri Filho, de Franca (SP) – Arquivo Pessoal

A cegueira fez com que precisasse se adaptar, mas não perdeu o bom humor e fez aflorar ainda mais a sua memória. Tanto que era conhecido na cidade como uma espécie de “arquivo vivo”. Lia com a ajuda de softwares e sintetizadores de voz e produzia textos semanais para o jornal “Comércio da Franca”.

A ideia de publicar seus textos no livro “Crônicas Escolhidas” foi da professora de linguística Maria Angela de Freitas Chiachiri, viúva do historiador. Foram impressos mil exemplares, com 85 crônicas que tratam das memórias de amigos e família, na primeira parte, da identidade francana, na segunda, e da história da cidade, na última.

“Ele fala sobre as figuras folclóricas da cidade e seus personagens, além de contar a história da cidade de um jeito leve”, disse o advogado José Chiachiri Neto, filho do escritor. Parte da renda será encaminhada à associação dos cegos da cidade.

Chiachiri é autor dos livros “Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do Imperador” (1986) e “Entrantes no Sertão do Rio Pardo” (1991) e investigou documentos em centros de pesquisa em São Paulo e Minas Gerais para desvendar a história da cidade no início do século 19.

Fundou o Arquivo Histórico de Franca, que dirigiu por oito anos, até a década passada. Morreu em 2015, aos 70 anos.

‘Visões do Invisível’
“A cegueira, prezado leitor, não é uma tragédia total. Como já disse em outras oportunidades, ela tem também as suas vantagens. Eu, por exemplo, construo o meu mundo e a minha cidade do jeito que quiser. Não perdi minhas referências. Os símbolos da minha terra permanecem vivos e intactos em minha memória. A fúria iconoclasta, a cobiça dos especuladores imobiliários, a insensibilidade daqueles que em nome do progresso e em defesa da mediocridade destroem os nossos monumentos artísticos e arquitetônicos para darem lugar a estacionamentos de automóveis ou templos consagrados ao dinheiro, não me afetam.” (extraída do livro)