Iracema, 53, a índia kaigang parteira do RS

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FERNANDA CANOFRE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PORTO ALEGRE

A primeira vez em que viu uma criança chegar ao mundo, Iracema tinha cinco anos. Sua avó era a kuiã –nome da etnia kaingang para curandeiros– da região e estava de sobreaviso para a grávida da aldeia que poderia entrar em trabalho de parto a qualquer momento, naquela madrugada. Quando bateram à porta da casa, Iracema lembra da avó agarrando suas coisas e ajeitando o cesto nas costas, onde a colocava, para irem trabalhar.

Desde antes de saber caminhar, Iracema vivia com a avó. Foi ela quem a amamentou e criou depois que uma cobra entrou na casa e fez o leite da mãe da menina secar com o susto.

Na reserva indígena de Serrinha, entre Nonoai e Ronda Alta, região norte do Rio Grande do Sul, era a avó quem manejava as ervas medicinais e trazia gente ao mundo. Entre os sete irmãos e as seis irmãs, Iracema foi a única que nasceu com a mesma vocação.

“Ela era nossa médica, era a kuiã. Ela não cursou faculdade, era um dom de Deus. Ela conhecia plantas, sabia sobre os remédios, como fazer as massagens”, lembra Iracema, sentada no sofá de sua casa em Porto Alegre.

A parteira kaigang Iracema, 563, com o marido, cacique João Padilha, na casa da família, na periferia de Porto Alegre - Crédito: Fernanda Canofre
A parteira kaigang Iracema, 53, com o marido, cacique João Padilha, na casa da família, na periferia de Porto Alegre – Crédito: Fernanda Canofre

Quando saiu da aldeia de Nonoai, aos 18 anos, Iracema partiu para levar seus conhecimentos de kuiã para outros lugares. Acabou ficando um tempo no interior do Paraná, onde ela e uma companheira guarani atendiam grávidas em terras indígenas, com apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio) e ensinavam técnicas de parto indígenas para enfermeiras.

Depois de se casar e voltar ao Rio Grande do Sul, os atendimentos passaram a ser em qualquer lugar que a chamassem.

Aos 53 anos de idade, já perdeu as contas de quantas crianças ajudou a nascer. “Nem sei mais, mas contando tudo passa de 100”, diz ela.

Como nascem os kaingangues

Os trabalhos da medicina kaingang com gestantes são semelhantes aos de outras etnias indígenas.

A partir dos quatro meses, quando acreditam que a criança está decidida a vir ao mundo, os kuiãs acompanham as mães com banhos mensais de vẽnh-kagta –as ervas colhidas no mato– chás, massagens e benzimentos.

Para eles, é isso que ajuda a preparar o corpo da mulher para o parto. Três tipos de ervas são usados no tratamento: uma só para fortalecer os músculos e a pele, outra para afastar as energias ruins e a terceira para equilibrar o organismo da mãe.

Iracema nasceu assim, como a mãe, a avó e gerações de kaingangues antes delas, e teve os oito filhos –os cinco que sobreviveram e os três que perdeu– todos de parto normal.

A filha Audisseia, 23, no entanto, acabou optando por ir a um hospital quando chegou a hora de seu parto. Com 18 anos na época, cerca de 1,55m de altura e pouco mais de 40 kg, os médicos calcularam que seria arriscado para a jovem ter a bebê de 3,7 kg com um parto normal e agendaram uma cesariana.

Iracema não concordou. Depois de massagear a barriga da filha, ela conta que sabia que a netinha estava pronta para vir ao mundo sem que ninguém cortasse a barriga da mãe.

“Nós que fazemos partos, temos ainda muitos espinhos dos médicos”, diz ela. No hospital, não permitiram que Iracema desse os chás ou fizesse as massagens na filha. As duas entraram em um banheiro e seguiram o ritual que ela aprendera com a avó, em Nonoai, às escondidas.

A parteira kaigang Iracema, 53, com a filha Audisseia, 23 - Crédito: Fernanda Canofre
A parteira kaigang Iracema, 53, com a filha Audisseia, 23 – Crédito: Fernanda Canofre

Na hora do parto, ela conta que pediu um pouco mais de paciência ao médico. “O médico queria fazer cesariana, o quarto estava pronto, tudo pronto. Ele me obrigou a assinar um documento, se a bebê nascesse morta, eu seria a culpada. Eu disse que não ia nascer morta, que ia nascer chorando. E dito e feito: nasceu e chorou”, lembra a mulher com uma fala mansa.

Os tempos, no entanto, acabaram mudando algumas das tradições. O marido de Iracema, Cacique João Padilha, conta que nasceu na beira de uma sanga, pelas mãos do pai e da mãe. Lá, o casal deu banho no bebê, cortou o cordão umbilical e o prendeu com um bico de pedra preparado para evitar infecções.

As três irmãs de João também nasceram assim, na terra indígena perto de Soledade, onde o kuiã-parteiro era o seu avô.

Pai e o ‘parto humanizado’ dos kaigang

A participação dos homens nos partos é um traço da cultura kaingang. Quando a mãe começa a fazer força para empurrar o bebê, cabe a eles a função de apoiá-las pelas costas e segurá-las pelos braços.

Se a mãe enfrenta dificuldades no trabalho de parto, é o pai quem deve ajudar com as simpatias para desbloquear o caminho do filho que vem. Iracema conta que as simpatias para “tirar os obstáculos do parto” nunca falharam.

Ela lembra que certa vez, ainda no Paraná, um dos partos que acompanhou se arrastou por horas e a criança não vinha. A kuiã chamou o pai para um canto e pediu que arrumasse um porongo –espécie de cabaça, comum no sul, usada para fazer as cuias de chimarrão.

Seguindo a simpatia, o pai deveria dar voltas ao redor da casa onde a mãe estava, soprando o fumo preparado dentro do porongo e cantando versos em kaingang. Os tropeços que ele dá enquanto caminha, durante o ritual, segundo a kuiã, representam os obstáculos que impedem o bebê de vir ao mundo sendo derrubados. “E funciona, já vi funcionar em uns quantos partos. É muito bom”, diz ela.

Porém, com o número de kuiãs diminuindo, muitos indígenas sem-terra vivendo fora de aldeias, os hábitos alimentares mudando, o marido do Iracema reconhece que os antigos costumes já não são o bastante para garantir a segurança de mãe e bebê. “Às vezes, nem as ervas estão tendo os mesmos efeitos que tinham no passado. Tudo isso é uma dificuldade”, diz Padilha.

Atualmente, a dificuldade financeira impede que a kuiã possa seguir exercendo a vocação de parteira como antes. “Outra dia, uma amiga guarani, a Guacira, me ligou à noite para ajudar em um parto. Mas era longe e depois que passa da meia-noite já não tem ônibus aqui. Nós até temos um carro, mas a gasolina é cara e se é longe…não tem como”, lamenta ela.

Este ano, Iracema só trabalhou em dois partos por causa das dificuldades. Um deles, em março, em uma comunidade quilombola da periferia de Porto Alegre; o outro de uma indígena, que vive em uma vila da cidade de São Leopoldo, a 30 minutos da capital.

Ela não esmorece. Sem encontrar nos filhos um kuiã para passar o que sabe, ela coloca esperanças em uma das netas. “Minha netinha de 7 anos foi me ajudar num benzimento outro dia e gostou. Acho que ela vai se interessar”, conta.

Em agosto, ela também Iracema estreou como professora de uma cadeira especial de graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao lado do marido e de mestres da cultura afrodescendente, chamada de Encontro de Saberes. Ela espera assim não deixar sua cultura morrer.