A estrada boiadeira paulista e o Brasil dos anos 20 na visão de um francês viajante

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LÍVIA MARRA
DE SÃO PAULO

Os resquícios de um Brasil urbano e moderno daqueles anos 1920 acabavam ali, naquela estrada ainda conservada em meio a plantações de café na altura de São José do Rio Preto, no interior paulista. A partir daquele trecho, restava aos viajantes e aventureiros se embrenhar mata adentro pela antiga estrada boiadeira.

Roger Courteville era um desses corajosos a enfrentar o trecho iniciado na boca do sertão paulista. Há 90 anos, o francês iniciou uma aventura com o objetivo de ser o primeiro a fazer uma travessia de automóvel pela América do Sul. Com uma caixa de ferramentas e acompanhado da mulher Martha e de um mecânico, saiu do Rio com destino a Lima, no Peru, a bordo de um Renault. Passou sufoco, ficou a pé, quase foi morto por militares, mas contou com ajuda durante o trajeto.

 

Mapa da América so Sul com o traçado da viagem do francês Roger Courteville entre o Rio e Lima, no Peru - Divulgação
Mapa da América do Sul com o traçado da viagem do francês Roger Courteville entre o Rio e Lima, no Peru – Divulgação
“Na época tinha a questão nacionalista. Courteville queria fazer pela França a travessia, para promover o país”, diz o jornalista Marco Aurélio Weyne, que pesquisa a história há anos para servir de base a um romance.

O engenheiro francês, ex-militar, relatou sua viagem no livro ‘‎La Première Traversée de L’Amérique du Sud en Automobile – de Rio de Janeiro a Paz et Lima’. Ainda assim, é pouco conhecida e não há muitos detalhes sobre ela. Por isso, Weyne recorre a bibliotecas, museus e prefeituras pelo Brasil em busca de jornais da época ou relatos sobre a passagem do trio.

“Não tem sido fácil. Mas, às vezes, chego em um lugar onde acho não vou encontrar informação e acabo encontrando”, diz.

MOSQUITOS E SABOTAGEM

No começo deste mês, Weyne, que mora em Brasília, esteve no interior paulista em busca de pistas sobre Courteville. Passou por Votuporanga, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto. Na região, visitou a histórica estrada imperial do Porto Taboado, conhecida como Boiadeira por seu uso para transporte de boiadas.

O  Ford T do francês Roger Courteville, com a mulher Martha e um mecânico a bordo, precisou enfrentar trechos de rio - Divulgação
O veículo do francês Roger Courteville, com a mulher Martha e um mecânico a bordo, precisou enfrentar trechos de rio – Divulgação
O passeio pela estrada boiadeira é citado no livro. Courteville lembra que, naquele 1926, quando começou a viagem rumo ao Peru, a estrada estava em péssimas condições, e pneus furavam de 100 em 100 metros.

À noite, em meio a uma clareira na selva, os três viajantes se revezaram na vigília do acampamento por medo do ataque de onças diante do isolamento e da distância com o mundo moderno.

Após dois dias sendo literalmente devorados pelos mosquitos e abrindo caminho a machado dos troncos de arvores caídos, chegaram às barrancas do rio Paraná, no antigo Porto Taboado, hoje no fundo da represa de Selvíria, já na fronteira com o Mato Grosso do Sul, diz Weyne.

Os 'perrengues' da estrada na viagem entre o Rio e Lima em 1926 - Divulgação
Os ‘perrengues’ da estrada na viagem entre o Rio e Lima em 1926 – Divulgação
O pesquisador afirma que, de São Paulo a São José do Rio Preto, a conservação do piso da estrada era garantida porque uma empresa de Rio Preto –chamada Transportes e Melhoramentos– operava diversas “jardineiras” Ford (ainda com carroceria de madeira) até a capital paulista fazia a manutenção da estrada.

“Na região de Ribeirão, o mecânico que acompanhava Courteville sabota o carro. Diz que estava com medo de atravessar Mato Grosso, que era uma região seca e remota”. O francês, então, seguiu viagem com outro mecânico. Era uma viagem ousada, com a infraestrutura e recursos que ele tinha”, afirma.

RESISTÊNCIA

Segundo o pesquisador, o aventureiro encontrou resistência de seu país na empreitada, pois havia temor de que problemas na travessia arranhassem a reputação da indústria francesa, por exemplo.

“Em um momento do trajeto, em Mato Grosso, ele perdeu o motor do carro. Foi socorrido por militares, e passaram um telegrama para a França [pedindo ajuda por outra peça]. Na minha leitura, aí ele ainda não sabe que os franceses eram contra a viagem”, diz.

Courteville seguiu sua rota com um motor de Ford T adaptado.

O  Ford T do francês Roger Courteville na viagem ao Peru - Divukgação
Martha na parte traseira do carro na viagem do Rio ao Peru – Divulgação
Para Weyne, não está claro se o ex-militar teve problemas quando retornou ao seu país. “Ele fez filmes da viagem, expôs a antropólogos, sociólogos, pessoas que tinham interesse naquilo”, disse.

Courteville chegou ao Rio em 1922, aos 25 anos. A viagem começou quatro anos depois e ele chegou a Lima em 1927. Morreu na França, sozinho.

O jornalista afirma ter conseguido do único filho de Courteville, em 2000, os direitos autorais. “Quero contar a história não como documentário, mas adaptada a um romance”, afirma. Já há esboço para o livro, mas Weyne diz ainda não saber se ele desenvolverá sozinho a história.

Weyne diz que o livro já tem nome: “A Incrível Viagem pela Insólita Estrada da Riqueza”, embora ele ainda não saiba se fará o livro ou ficará só com a pesquisa.