Com mãe engraxate, estudante do RS passa na OAB antes mesmo de se formar e rebate preconceito
PAULA SPERB, COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PORTO ALEGRE
Filho da única mulher engraxate da tradicional praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre (RS), um estudante gaúcho venceu o preconceito contra a mãe e também a alta taxa de reprovação da OAB –de mais de 80%. Juliano da Silva Dias, 22, passou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil antes mesmo de terminar o curso de direito na tradicional PUC/RS.
Moradores da comunidade Rubem Berta, na periferia da capital gaúcha, ele e Vera Pereira da Silva, 54, passaram os últimos anos ouvindo frases preconceituosas. “Até filho de engraxate está na faculdade!” e “essa bolsa é graças às nossas migalhas” foram algumas delas.
A bolsa citada é do ProUni, única forma que a família achou para ele cursar a faculdade particular. Dias sempre estudou em escolas públicas e não fez nenhum curso preparatório para o Enem. Para entrar na PUC, ele estudava as disciplinas por conta durante a madrugada e sua nota garantiu o ingresso no curso sonhado.
“De manhã eu ia pro colégio, de tarde fazia um curso de mecânica no Senai e à noite ia para o CTG (Centro de Tradições Gaúchas)”, relembra ele ao blog Brasil. O CTG foi uma estratégia da mãe, Vera Pereira da Silva, 54, para manter o filho “fora da rua e longe das más companhias” do bairro conhecido pela violência e tráfico de drogas.
Agora, conta Dias, ele voltou ao ritmo da época de colégio e chegou a estudar até 15 horas por dia para a segunda fase da prova da OAB.
Quando entrou na faculdade, Dias teve que arcar com outras despesas desde 2011. “Mesmo com a biblioteca à disposição, alguns livros precisam estar sempre conosco, como o ‘Vade Mecum’. Além disso, por fazer estágio em um escritório, preciso vestir terno e gravata”, conta.
REDE DE COLABORAÇÃO
Apesar do preconceito, Vera e o filho contaram com a ajuda de uma rede de colaboradores, já que livros e roupas adequadas custam caro à família. A mãe, que ganha R$ 10 a cada par de sapato engraxado, contou com doações de alguns clientes seus para ajudar o filho. Advogados, empresários e até políticos fazem parte da clientela de Vera que doou roupas, sapatos e obras sobre direito.
Com a proximidade da formatura do filho, em agosto, Vera iniciou uma vaquinha na internet para pagar a festa. Isso porque todas economias foram gastas no funeral e velório do padrasto de Juliano, que morreu em janeiro.
Dias conta que, na página da vaquinha, o preconceito voltou. Algumas pessoas comentaram “se teu filho está estudando com bolsa é graças às nossas migalhas”. “A bolsa do ProUni é realmente para dar oportunidade para quem tem dificuldade social”, disse.
Vera é engraxate na praça da Alfândega, no centro da cidade, há dez anos e herdou a cadeira do pai, João Estevão da Silva, morto aos 68 anos, em 2006. O avô de Juliano foi engraxate por meio século. “Quando ele tinha mais ou menos 18 anos, os padres conseguiram a cadeira para ele trabalhar porque ele tinha uma deficiência: uma perna mais curta do que a outra, por causa da paralisia infantil”, conta o rapaz.
Quase formado, Dias venceu outra barreira. No último semestre do curso, é muito raro que escritórios de advocacia contratem novos estagiários. A procura é por estudantes na metade do curso, que possam ficar de um a dois anos trabalhando.
Praticamente bacharel, Dias conseguiu um estágio com ajuda da mãe. Um cliente deixou seu cartão profissional para Vera dar ao filho. “Quando teu filho precisar, pode dizer para ele me ligar”, teria dito o homem.
Dias conta que guardou o cartão e, ao se matricular em uma das últimas disciplinas, notou a semelhança entre o nome do professor e o nome do cartão. O cliente é pai do docente. O rapaz foi selecionado para uma vaga no local há um mês e meio.
Falta pouco para o rapaz terminar a faculdade, o plano dele é dar seguimento aos estudos. “Meu sonho agora é fazer mestrado em Coimbra, Portugal. Depois, quero ter um escritório e poder atuar de graça para defender quem tenha seu direito infringido.”
E diz que vai ajudar inclusive aquelas pessoas com preconceito a filhos de engraxate.