Mortes e conflitos no campo, drogas e queimadas: o ‘lado B’ do Proálcool, 40
POR MARCELO TOLEDO
DE RIBEIRÃO PRETO
Mortes de boias-frias por exaustão, drogas entre eles, queimadas, conflitos no campo e desemprego. Se por um lado o setor sucroalcooleiro contribuiu com a economia do país, por outro o “lado B do Proálcool” exibe um cardápio de problemas que ainda repercutem na cadeia da cana-de-açúcar.
O Programa Nacional do Álcool, que completou 40 anos no último dia 14, incentivou a produção de etanol com o objetivo de reduzir a dependência do Brasil pelo petróleo, mas contribuiu também para o êxodo de cidades do Nordeste e do norte mineiro para o interior de São Paulo, principal produtor de cana do país. Com isso, vieram também inúmeros problemas sociais.
Trabalhadores sem registro em carteira, sem local adequado para se alimentarem –nem mesmo onde esquentar suas marmitas (o que originou a criação da expressão “boia-fria”)–, sem equipamentos de proteção individual e transportados em caminhões improvisados eram cenas comuns em municípios na macrorregião de Ribeirão Preto, mais tradicional polo do setor.
Só depois de algumas revoltas –a mais famosa delas foi o Levante de Guariba, em 1984– e da ação do Ministério Público contra as irregularidades trabalhistas e as queimadas, as condições dos boias-frias começaram a mudar nas lavouras de cana-de-açúcar.
Maior greve rural do setor canavieiro, os protestos de Guariba (a 337 km de São Paulo) fizeram a pacata cidade –cerca de 38 mil habitantes hoje– se transformar num campo de guerra. Os atos terminaram com um saldo de uma pessoa morta e 30 feridas, sendo 14 a bala.
Com 18 anos à época e atuante nas lavouras, o ex-cortador de cana Wilson Rodrigues da Silva, hoje presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba, disse que o movimento foi extremamente importante para que as relações trabalhistas passassem por modificações.
‘QUASE ESCRAVIDÃO’
“Era um momento muito difícil, quase de escravidão. Não tinha patrão, ninguém tinha responsabilidade pelo empregado. A categoria era abandonada. Trabalhávamos de qualquer jeito, cheirando veneno”, afirmou.
Os problemas começaram a ser resolvidos, mas num ritmo lento. Persistiram nas décadas seguintes, quando o setor passou a ver também outras questões, como o avanço das drogas nos canaviais.
Em 2006, documentos da Pastoral do Migrante apontaram a preocupação com a chegada do crack nas lavouras de cana. Dois anos antes, começaram os relatos de mortes atribuídas à exaustão provocada no corte da cana. Foram 22 entre 2004 e 2008.
A investigação das mortes até mesmo por organismos ligados à ONU (Organização das Nações Unidas) fez com que melhorias fossem obtidas pelos trabalhadores rurais –equipamentos de proteção, banheiros, água gelada e sombra para repouso estão entre as exigências atendidas.
A segunda metade da década passada foi marcada também pela assinatura do protocolo agroambiental entre Estado, usinas e produtores de cana, que resultou na redução drástica das queimadas de cana em São Paulo.
Apesar da redução no total de boias-frias, devido ao avanço da mecanização, e ao crescimento das blitze por órgãos de fiscalização, o trabalho nas lavouras ainda é penoso e apresenta problemas, na avaliação de Maria Aparecida de Moraes Silva.
Professora livre docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pesquisadora no programa de pós-graduação em sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), ela estuda as relações trabalhistas entre boias-frias e usinas e as condições enfrentadas pelos migrantes no interior paulista há mais de três décadas.
“Há um conjunto de elementos que não são colocados no momento em que as usinas afirmam que o produto [etanol] é uma mercadoria verde e, consequentemente, responsável. Não falam, por exemplo, que a frota de caminhões das usinas é movida a diesel, assim como tratores e máquinas”, afirmou.
Ainda segundo ela, as relações trabalhistas hoje são mais adequadas e não se acha trabalhador que não tenha registro em carteira. Apesar disso, os que seguem na profissão sofrem as exigências do campo, como o pagamento por produtividade.
‘60 ANOS DE QUEIMADAS’
“As queimadas diminuíram, mas não acabaram. Mas, ainda que tivessem acabado, há uma conta de décadas que não foi paga. Quantos poluentes essas usinas não jogaram no ar durante mais de 60 anos de queimadas?”, questionou.
Silva, do sindicato de Guariba, confirmou que a queima continua sendo praticada em algumas regiões de São Paulo, em locais com declividade no solo que impede o uso de máquinas. Nesses locais, o protocolo permite a queima até 2017.
“Quem continua cortando cana segue ganhando por produtividade, ou seja, ele é explorado ao máximo. É um trabalho penoso, tanto para quem corta quanto para quem trabalha nas máquinas”, disse a pesquisadora.
SUPERAÇÃO
Para Antonio de Padua Rodrigues, diretor-técnico da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), os problemas que competiam ao setor foram superados com o passar dos anos.
“[O setor] Faz o protocolo ambiental, elimina as queimadas, consegue viver com geada, frio, chuva, sol e administrar toda essa pressão da mão de obra social”, disse.
Segundo ele, tudo o que foi feito impactou nos custos de produção e contribuiu para mudar a estrutura do setor. “Hoje o setor tem a maior frota de carros-pipa no mundo, depois do fim das queimadas. [Antigamente] Não tinha engenheiro ambiental nas usinas, não havia área de sustentabilidade. Não operava na Bolsa. E estamos em revolução do ponto de vista de tecnologia”, disse.
Guariba, a outrora “capital” dos boias-frias, não viu chegar neste ano as até então tradicionais “caravanas de migrantes” por causa do crescimento da mecanização da colheita.
Segundo a Pastoral do Migrante, o fato é inédito desde o início do Proálcool. Guariba já chegou a abrigar 10 mil boias-frias –mais de um quarto da população atual. Hoje, segundo o sindicato, restam apenas 750 filiados.