O caboclo que salvou tripulantes de um navio imperial

brasil
POR JULIANA COISSI
ENVIADA ESPECIAL A LINHARES (ES)

Naquele fim de século 19, Barra do Rio Doce, conhecida hoje por Regência, no encontro do rio Doce com o mar, no Espírito Santo, era apenas uma vila de pescadores, a maioria caboclos frutos da mistura de brancos colonizadores com índios botocudos e tupiniquins da região.

Bernardo José dos Santos era um desses filhos da terra, pescador e pai de quatro filhos. Mas na madrugada de 1887, o caboclo Bernardo entraria para a história de Regência como o herói que usou seus conhecimentos do mar da região para resgatar a tripulação de um navio imperial naufragado.

O episódio está registrado nas paredes do Museu Histórico de Regência, no centro do vilarejo, com textos, desenhos, fotos e uma miniatura do navio naufragado dentro de uma garrafa.

Era 1h40 de um sete de setembro, exatamente 65 anos depois da Proclamação da Independência por D.Pedro 1º. O navio-escola cruzador  “Imperial Marinheiro” cumpria sua missão de fazer estudos da costa marítima do Rio de Janeiro a Abrolhos, no sul da Bahia, atendendo a um pedido da França feito para a marinha brasileira.

Em meio a uma forte tempestade, a embarcação chocou-se nos bancos de areia próximos à praia. O naufrágio, na época, foi atribuído a uma variação na bússola e erro de cálculo. Dos 142 homens a bordo, doze lançaram um barco de menor porte ao mar para pedir ajuda.

Moradores chegaram, então, à praia para prestar auxílio aos náufragos. É quando a memória de Regência cita o ato de coragem de caboclo Bernardo. Ele “atira-se ao mar bravio para levar ao navio o “cabo de espia” [espécie de corda]. Porém, por quatro vezes é jogado de volta à praia, e na sua insistência consegue chegar aos destroços do ‘Imperial Marinheiro'”, relata a documentação do museu.

Um pequeno barco é amarrado ao cabo para realizar o salvamento. A figura de caboclo Bernardo é ressaltada como protagonista, na narrativa de Regência. “O caboclo Bernardo em seu ato de bravura humanitária consegue, após cinco horas de luta, salvar 128 náufragos”.

 

No fim do mesmo mês, o herói capixaba viajou para o Rio de Janeiro, acompanhado de tripulantes do navio que ele ajudou a resgatar no mar de seu vilarejo.

O morador de Regência foi condecorado pela princesa Isabel em nome do imperador D. Pedro 2ª, com a medalha de 1º classe cunhada de ouro.

Reza a história do vilarejo, repetida na escola para as crianças e também contada no museu, que a princesa teria lhe oferecido bens e um emprego no Rio. Mas caboclo Bernardo pediu apenas ao seu vilarejo a instalação de um farol, para que não acontecessem mais acidentes como aquele com o navio imperial.

Lenda ou não, o farol foi instalado na vila em 1895. Em 2014, o governo do Espírito Santo entregou restaurada a cúpula do farol, na data do centenário da memória de caboclo Bernardo.

 O herói capixaba até hoje é celebrado no vilarejo, com festas de grupos de congado. A data é celebrada em junho, com bandas de congo vindas de todo o Estado.

Itamar Góis Alves, 47, é cabocla como Bernardo, com avós da etnia dos krenac. Funcionária do museu, ela acompanha a visita da reportagem e faz questão de cantar uma das músicas que exalta os feitos de caboclo Bernardo compostas por outro personagem ilustre de Regência.

É que o museu também reserva um espaço para Elpídio Ângelo de Macedo, o seu Miúdo. Até sua morte, seu Miúdo foi o guardião da memória do caboclo Bernardo. Era ele quem limpava o busto do herói local, na praça, e o jazigo onde ele foi enterrado. Ele compôs músicas em homenagem a seu ídolo, que foram gravadas em um CD e estão à venda no local.

O museu traz roupas da festa de congado e peças usadas no cotidiano dos moradores. Entre elas estão as redes de pescar, o principal sustento de Regência.

 As redes serão peça de museu também, depois da lama que chegou ao vilarejo, vinda do rompimento de uma barragem, em Mariana (MG), no dia 5, da mineradora Samarco, controlada pela Vale e BHP Billiton?

Itamar suspira e olha para o chão antes de responder a pergunta da reportagem. “Pode ser que sim. É uma situação bem desagradável. Meu marido é pescador, eu sou daqui, cresci tomando banho de rio, lavando e areando panelas lá”, lamenta a cabocla. “Eu confesso que não tive ainda coragem de chegar perto do rio depois dessa lama”.