ONGs de redução de danos lutam para sobreviver
POR ESTÊVÃO BERTONI, DE SÃO PAULO
Até dezembro do ano passado, Wallace Osti e Silva, 26, foi uma vez por semana ao bairro do Tatuapé, em Piracicaba (a 160 km de São Paulo), falar com pessoas que fumam crack em “mocós” no meio de uma mata.
Explicava a eles por que tratar feridas na boca e não compartilhar cachimbos, na tentativa de barrar uma tendência: segundo pesquisa da Fiocruz, 71% dos usuários de crack dividem o utensílio, e 52% fumam em latinhas, o que ocasiona queimaduras nos lábios e propicia o contágio de doenças.
Wallace buscava ainda facilitar o acesso dos usuários de crack aos serviços de saúde (só 27% afirmam usá-los), dentro do princípio da redução de danos.
Surgida há 25 anos no país, essa estratégia não prega a abstinência –a escolha de largar ou não as drogas é do usuário. Seu objetivo é reduzir os riscos do uso.
Neste ano, o trabalho de Wallace nos “mocós” do Tatuapé, como redutor de danos do Casvi (Centro de Apoio e Solidariedade à Vida), tornou-se esparso. O financiamento da prefeitura ao projeto acabou, mas a ONG quer manter as visitas, aproveitando que já faz uma outra ação no bairro.
Na última década, centenas de entidades civis de redução de danos sumiram no país por falta de financiamento.
Estudos apontam que, entre 1993 e 2002, o Ministério da Saúde bancou 976 projetos de ONGs, 186 deles de prevenção à Aids entre usuários de drogas injetáveis. Com a queda no uso dessas drogas e com a descentralização dos recursos do Programa Nacional de Aids a partir de 2002, muitas entidades fecharam.
“Ficou a critério de Estados e municípios financiar essas ONGs. E eles não fizeram isso porque não é popular. Se o gestor tem liberdade para decidir onde colocar um recurso, ele pode preferir investir em prevenção nas escolas, que é muito mais popular para um político do que investir em troca de seringas para usuários de drogas. Redução de danos não traz votos”, afirma a pesquisadora Elize Massard da Fonseca, da FGV.
A Reduc (Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos) estima que 200 ONGs do tipo tenham existido no país. Hoje, a Aborda (Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos) não conta mais de 30.
Para Vera Da Ros, presidente da Reduc, embora a redução de danos tenha sido incorporada ao SUS (Sistema Único de Saúde), o trabalho das ONGs, que em muitos casos usavam ex-usuários como redutores, é importante por ir a locais onde os serviços públicos não chegam.
“O agente de saúde muitas vezes não faz parte daquela comunidade, não tem a linguagem do usuário que está em risco tanto para a Aids e a hepatite quando para uma overdose”, afirma.
Daniela Trigueiros, vice-presidente da Reduc, diz que as ONGs se agarraram exclusivamente ao financiamento público. “E não existe só o apoio de governo. Tem ainda iniciativa privada, doações, bazares. As ONGs que ficam na aba do governo acabam tendo uma dificuldade, porque os recursos também são limitados.”
Em Curitiba, a Humanar sobrevive de um bazar e da ajuda do governo federal para manter uma casa de apoio. O trabalho dos redutores de danos ainda é feito pela entidade, mas apenas nas ruas vizinhas à ONG.
PONTO DE CULTURA
Em São Paulo, o É de Lei, que existe desde 1998, tem hoje dois redutores –chegou a ter dez. Duas vezes por semana, eles distribuem na cracolândia manteiga de cacau (para evitar feridas nos lábios), piteiras e camisinhas.
No Brasil, 5% dos usuários de crack têm Aids, taxa oito vezes maior que a da população em geral, e 42% relatam já ter trocado droga por sexo, segundo estudo da Fiocruz.
Uma das estratégias da ONG para se manter foi virar, em 2010, um ponto de cultura (entidade que desenvolve atividades culturais com apoio do Ministério da Cultura). Passou a produzir, por exemplo, documentários com consumidores de crack.
Bruno Gomes, coordenador da ONG, diz que já tentou apoio com empresas da área de responsabilidade social, mas esbarrou no preconceito. “A gente apresentava o trabalho e elas diziam: ‘É legal, mas para a gente não é bonito apoiar’. Trabalhamos com pessoas estigmatizadas e não oferecemos uma salvação.”
INCORPORAÇÃO AO SUS
“Com meia dúzia de ONGs ativas, pode parecer, num primeiro olhar, que a redução de danos está morrendo. Só que a questão tem outro lado”, diz o sociólogo Dênis Petuco.
Surgida como estratégia de troca de seringas para tentar controlar a Aids nos anos 80 e 90, a redução de danos acabou se impondo com o passar dos anos e foi sendo incorporada ao SUS.
Iniciativas como os Caps AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Droga) e os Consultórios na Rua (de atenção básica para moradores de rua) são apontadas como seguidoras dessa perspectiva.
Mas a incorporação dos princípios da redução de danos ao sistema público de saúde nem sempre se deu “de modo pleno”, segundo especialistas.
“Percebeu-se que era importante ter pessoas com vivência do uso de drogas nesse trabalho. E como contratá-los por concurso público?”, questiona Dênis Petuco.
Para ele, o serviço dos redutores também exigia que se atuasse em locais e horários pouco convencionais.
“Por exemplo, estar debaixo de um viaduto em São Paulo à meia-noite. Como obrigar um servidor público a fazer isso? Contratando ONGs, isso ficou mais fácil”, afirma.
O professor da Unifesp Dartiu Xavier da Silveira lembra que há exemplos de bons trabalhos no SUS. “Existe o Caps da Sé, onde o agente de saúde trabalha de forma muito parecida com o É de Lei. Por que os outros não trabalham dessa forma? Porque não foram capacitados para isso.”
A redução de danos, na visão do advogado Maurides Ribeiro, sofre um “esvaziamento” desde o lançamento do plano nacional de enfrentamento ao crack, em 2010.
“Por paradoxal que pareça, a política de redução de danos se tornou oficial, mas, por opção política, não se investe mais nessa perspectiva. Você fala: estou internando todo mundo, e o ‘bom pai de família’ que está jantando e assistindo ao ‘Jornal Nacional’ vai ficar feliz”, afirma.
Há os que reafirmam a importância das ONGs, por serem uma estratégia a mais no tratamento aos usuários, mas que contestam os efeitos da redução de danos.
“A redução de danos é incrível para drogas injetáveis, mas com o crack não é realmente eficaz. Tem que incentivar a abstinência, porque, só reduzindo o dano, a longo prazo esse resultado é muito pequeno”, diz Clarice Madruga, professora da Unifesp.