Caso Aracaju: bom pretexto para ver (ou rever) um clássico do cinema
LUÍS EBLAK, CHEFE DE REPORTAGEM DA AGÊNCIA FOLHA
O que têm em comum Albuquerque, no Novo México (EUA), e Aracaju, no Nordeste brasileiro? Quase nada, mas o caso recente de um prédio que desabou na capital sergipana pode ser um bom pretexto para rever (ou ver) o filme “A Montanha dos Sete Abutres” (Ace in the hole, no título original).
Clássico do cinema norte-americano, o título de 1951, dirigido por Billy Wilder (1906-2002), traz alguns pontos em comum com o triste episódio nordestino:
1) Também aborda um desmoronamento seguido de resgate (no filme, ocorrido numa área rural);
2) Acaba virando espetáculo midiático (numa proporção bem maior na comparação com o caso real);
3) E termina em morte.
Aqui, se esgotam as “coincidências” entre o filme e a tragédia de Aracaju. A obra de Wilder denuncia o sensacionalismo da imprensa numa época em que grande parte da mídia dos EUA dependia das vendas em bancas ou ruas e, portanto, frequentemente abusava dos títulos fortes para atrair leitores e anunciantes.
Wilder conta a história de um jornalista mau-caráter, arrogante e fracassado, Charles Tatum (Kirk Douglas), que manipula fatos e pessoas para transformar o tal resgate em sua grande reportagem.
Para isso, ele se faz de amigo da vítima que ficou preso numa mina, Leo Minosa (Richard Benedict), corrompe autoridades de Albuquerque para ter controle total sobre a história e até seduz a sra. Minosa, Lorraine (Jan Sterling).
Para dar um toque “mais humano” à história, Tatum força Lorraine, que já pensava em abandonar o marido antes do acidente, a se fazer de mulher arrasada com a tragédia –o que era pura mentira, segundo mostra o roteiro de Wilder.
Um ingrediente que costuma impulsionar vendas de jornais ajuda ainda mais Tatum: a tal mina fica na montanha dos Sete Abutres, localizada ao lado de um vilarejo índio e tem uma “maldição”. Por isso, pouca gente tem coragem de entrar no local.
Deu quase tudo certo: o repórter ganhou uma grande história, monopolizou todo o acesso a Minosa e comandou pessoalmente a distribuição de informações destinada às dezenas de jornalistas de jornais, TVs e rádios que se deslocam à montanha onde fica a mina (ele se tornou, ao mesmo tempo, repórter e assessor de imprensa).
Mais: Tatum também teve controle sobre a rede comercial de serviços montada do lado de fora da mina para os milhares de curiosos que vão ao local acompanhar o resgate. Barracas de comida, bebidas, venda de bugigangas, etc.
A crítica no filme é clara: a imprensa sensacionalista retratada por Wilder também tem participação no “pão” e no “circo” levados ao público.
ASSUNTO SÉRIO
Conhecido por comédias como “Quanto Mais Quente Melhor” (59) e “Se Meu Apartamento Falasse” (60), Wilder fez de “A Montanha dos Sete Abutres” o seu título mais “sério”. É uma ácida crítica ao jornalismo e muitos cinéfilos o consideram um de seus melhores títulos.
No caso Aracaju, a história é bem diferente. Aquele perfil de imprensa retratada por Wilder pouco tem a ver com o jornalismo de hoje. Jornais e outras mídias profissionais deste começo de século 21 mudaram muito em relação à “yellow press” daquela época –como eram chamados os jornais sensacionalistas dos EUA (aqui no Brasil, curiosamente classificados de imprensa marrom).
Por isso, pode-se supor que, desde então, o jornalismo evoluiu e histórias como a de Tatum não ocorrem mais na mídia. Pode-se argumentar também, por outro lado, que as novas tecnologias ajudam os fatos a serem como eles realmente são, com pouca possibilidade de manipulações como a de Tatum –ainda assim, porém, com a ressalva: a verdade não está garantida.
Aqui, o caso de Aracaju é um bom exemplo: os próprios bombeiros da capital sergipana divulgaram vídeos de seu trabalho — não “precisaram” de jornalistas — e as centenas de pessoas que foram ao local também tinham celulares com câmeras e redes sociais e, com eles em mãos, contaram ao vivo sua versão da história — e mais uma vez sem “precisar” de jornalistas.
Em Aracaju, os jornalistas foram só jornalistas, o circo midiático foi bem mais modesto e a vítima real, o menino Ítalo Miguel, de 11 meses, acabou morrendo porque não resistiu aos ferimentos causados por ter ficado mais de 34 horas debaixo de escombros do prédio.
A tragédia, no entanto, não poderia ser menos cruel do que a do filme: Ítalo tinha viajado com a mãe e a irmã do interior de Alagoas para Aracaju para ver o pai, bastante apegado ao garoto. Os quatro dormiram de improviso no prédio em construção. O imóvel desabou, eles sobreviveram, mas ficaram sem comida e água por mais de 30 horas. E o resgate só foi concluído no segundo dia de trabalhos dos bombeiros.
Minutos depois do resgate, que completou uma semana neste domingo (27), Ítalo morreu por parada cardiorrespiratória.
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Em tempo: quem era e como morreu a vítima de Albuquerque? Aqui, não conto, mas o filme está nas locadoras — inclusive nas virtuais. Para compensar, deixo duas dicas de títulos igualmente em preto e branco — ambos dos anos 1940 — e com o jornalismo como foco: “Jejum de Amor” (refilmado pelo próprio Wilder em 1974), de Howard Hawks, e o óbvio “Cidadão Kane”, de Orson Welles (este, justamente sobre um dos magnatas da “yellow press”).