Sem remédio, clínica usa ‘palavra de Deus’ para tratar viciados
MILENA CRESTANI, DE CAMPO GRANDE (MS)
Em barracos de madeira e lona, sem nenhum profissional da saúde nem remédios, uma igreja evangélica de Campo Grande (MS) oferece “tratamento” gratuito para dependentes químicos.
O idealizador da Clínica da Alma, mantida com doações, é o pastor Milton Marques, um ex-viciado em drogas.
Atualmente, cerca de cem “pacientes” de cidades de Mato Grosso do Sul e de outros Estados vivem na chácara, a 20 km do centro da cidade.
Todo o “tratamento” é baseado na fé e nos “dizeres da Bíblia”. “Não tem lógica dar remédios para um dependente e esperar que ele cuide de tomar na hora certa”, afirma o pastor.
Homens de diversas idades chegam ao local indicados por parentes ou após serem encontrados nas ruas por fiéis da Igreja Tabernáculo da Glória.
“São pais que não veem os filhos há anos. Perderam emprego, casa e estavam morando na rua”, diz o pastor, que começou abrigando-os na sede da igreja, no centro. “Mas lá muitos saíam escondido e continuavam com as drogas.”
O Ministério Público Estadual instaurou um inquérito em abril para apurar se há violação aos direitos dos dependentes, após denúncias de cárcere privado e de que o pastor ficaria com metade do salário de ex-viciados que conseguem emprego.
Apesar de dizer que todos são livres para sair da chácara, Marques afirma que, quando alguém tenta ir embora, os colegas o impedem.
Mark Diego da Silva, 23, por exemplo, tentou escapar três vezes nos primeiros dias, quando chorava e tremia muito. “A vontade é de sair correndo. Nessa hora, as pessoas que estão há mais tempo aqui ajudam bastante.”
“Cheguei a comer lixo e não reconhecia que era viciado. Tudo mudou quando eu conheci a palavra e o pastor Milton”, afirma o ex-locutor Marcelo Renato Guterres, 42.
ROTINA
O dia a dia dos dependentes se resume a orações e cuidados com a chácara. Foram eles, inclusive, que construíram os barracos dos dormitórios em chão de terra batida e as duas casas de alvenaria, tudo com materiais doados.
Às 6h, os monitores –ex-viciados que estão há mais tempo no local– tocam o sino que chama para o culto.
Depois do café, todos cuidam da horta e dos animais ou fazem tarefas domésticas. Às 11h, há uma pausa para descanso e o almoço.
À tarde, a rotina se repete até as 16h, hora do banho frio antes das orações e do estudo da Bíblia. Duas vezes por semana, o futebol é liberado.
Há três anos, o CRP (Conselho Regional de Psicologia) denunciou a falta de profissionais da saúde no local.
“O tratamento não segue o que é preconizado pelo SUS e não há informação sobre pessoas que tenham se recuperado”, diz Carlos Afonso Marcondes Medeiros, que presidia o CRP-MS à época.
Segundo o pastor, as condições da chácara não são ideais, mas ele indaga: “Seria melhor se eles ainda estivessem na rua se drogando?”