Da criança à mãe adotiva: “Por que você demorou tanto para me buscar?”
NATÁLIA CANCIAN, DE SÃO PAULO
Nunca houve tanta gente “indiferente” no país.
Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que, a cada ano, aumenta o número de interessados em adotar uma criança que são indiferentes em relação à cor, ao sexo e à idade dos futuros filhos.
Para o Judiciário, essa é uma boa notícia: com menos exigências dos candidatos a adotar, aumentam as chances de mais crianças que esperam nos abrigos encontrarem uma família.
Um exemplo: de 2010 a 2014, a proporção de pretendentes que aceitava somente crianças brancas caiu de 39% para 29%. Já a de indiferentes em relação à cor passou de 29% para 42,5%.
O casal Flávia e Thales, de MG, estava nesse último grupo. Ao preencherem o cadastro, em 2009, só fizeram uma restrição: a idade, menor que dois anos.
O tempo passou e eles mudaram o pedido: de dois anos, passaram a aceitar uma criança de até seis.
Foi aí que apareceu a pequena Maria (nome fictício), hoje com quatro anos, dois deles em um abrigo. “Um dia, ela falou: Por quê, mãe? Por que você demorou tanto para me buscar?”, conta Flávia.
Abaixo da foto, o depoimento à Folha dessa mãe adotiva:
O primeiro encontro com a Maria [nome fictício] foi numa sala do fórum. Entrei primeiro para conversar com ela, e meu marido e o meu filho ficaram do lado de fora.
Assim que eu a vi, fiquei emocionada. Ela é uma criança muito alegre. Conversamos e eu perguntei: Você quer que eu seja sua mãe? Ela disse “quero!” e veio para o meu colo.
Depois entraram os dois. Foi ótimo, já na hora foi “meu irmão”, “minha irmã”. Correram por toda a comarca, até na sala do juiz.
Eu e meu marido sempre tivemos vontade de adotar. Entramos na fila de adoção quando o Matheus estava com dois anos. Na época queríamos até a idade dele. A assistente social avisou que ia ser difícil.
Não colocamos restrição de cor nem de sexo, nada. Foram cinco anos de espera. Fizemos o cadastro em 2009. Com o tempo, nosso filho cresceu e aumentamos o limite de idade também.
Nos tornamos padrinhos de um menino em um abrigo, que sempre vem passar um tempo com a gente, e mudamos de cidade.
Foi quando recebi uma ligação. Era uma assistente social. Gelei.
Ela contou que havia uma menina devolvida por outro casal que a havia adotado. Eles não queriam que ela voltasse para o abrigo, sozinha, então, se aceitássemos, nós a encontraríamos no fórum dali a dois dias.
Nossa situação foi atípica, porque há sempre um período de convivência com a criança antes de ela ser adotada. E ela iria direto para casa.
Antes, também falei com o meu filho, porque não queria impor nada para ele. E contei a história. Perguntei: “E aí meu filho, o que a gente faz?”. E ele disse: “Temos que trazer ela para a nossa casa e ser a família dela”.
ADAPTAÇÃO
Pela minha experiência, com filho, o primeiro mês é sempre difícil. Quando o Matheus nasceu, tive que me adaptar a ele, mas ele nasceu já adaptado a mim. Com o filho adotivo é assim: eu, a família e ela tivemos que nos adaptar.
Ela é muito sapeca, mexia em tudo, quebrava tudo, um furacão. Então tivemos que, desde cedo, conversar e ensinar as regras. O pessoal que me vê andando com ela hoje brinca: “Flávia, é a mesma menina?” Hoje ela já me pergunta: “Mãe, eu posso?”
O primeiro mês foi bem turbulento. Ela inventava algumas coisas, botava culpa no outro. Percebi que ela tinha medo de ser devolvida. Um dia, eu disse: “Filha, não importa se você fizer tudo errado, eu vou te colocar de castigo. Mas vou te amar pro resto da vida.”
Aí ela perguntou: “Você vai cuidar de mim para sempre?” E eu disse: “Vou”. Agora melhorou.
Muita gente fala para mim: “Você é doida, filho adotivo dá problema.” Não acho. Eu sei que isso não é questão de sangue.
Quando ela chegou, ela não sabia as letras, nada do que as outras criancinhas já sabiam. Passei três meses com ela em uma rotina de estudos. Ensinei as cores, fizemos músicas.
Tinha a hora de estudar, de brincar e de ver TV. Ela fazia manha, cruzava os bracinhos. Eu insistia, explicava que, se estudar, a gente pode ser o que quiser. Agora ela já está lendo mais que os meninos da sala dela [ri].
DEMORA
Um dia, ela falou: “Por quê, mãe? Por que você demorou tanto para me buscar?”
Expliquei que, assim que a assistente social me ligou, nós corremos para buscá-la. Mas ela continuou perguntando, e eu ficava sofrendo com isso. Parecia que a culpa era minha.
Um dia, eu expliquei: “Filha, tem gente que não pode ser mãe e pai. E tem quem sempre quis ser”. Hoje, ela mesma conta a história dela para as pessoas, de quando disse: “eu quero, quero!”.
Minha filha é muito linda, cheia de cachinhos. É maravilhosa [emociona-se], do jeito que eu sempre sonhei.
No início, eu tive dificuldade. Ela viu uma princesa loira e falou: “Olha mãe, que nem eu.” E não quero que ela queira ser loira, quero que ela goste de ser como é, negra.
Agora, ela já vê uma mulher negra na TV e fala: “Olha, que nem eu!”
Uma vez, uma senhora falou: “Ela deve ter puxado o pai, porque a mãe é que não foi.” Há essas pequenas coisas. Mas ela diz: “essa é minha mãe, meu pai e meu irmão”.
Já fiz as contas. Levei cinco anos para adotar. Quando entrei na fila, a mãe dela engravidou. Por isso penso que ela já era para ser minha.
Estar com ela é muito prazeroso. Antes, sentia que ela dizia “te amo” como falava para todo mundo, para agradar. Esses dias ela disse: “Acho que eu te amo de verdade”. Para mim, isso vale a vida.”