Brasil https://brasil.blogfolha.uol.com.br Histórias e personagens pelo país afora Thu, 28 Oct 2021 12:12:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Rota das Charqueadas em Pelotas (RS) remete o turista ao século 19 https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/rota-das-charqueadas-em-pelotas-rs-remete-o-turista-ao-seculo-19/ https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/rota-das-charqueadas-em-pelotas-rs-remete-o-turista-ao-seculo-19/#respond Wed, 11 Aug 2021 12:00:57 +0000 https://brasil.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/pelotas-320x213.jpg https://brasil.blogfolha.uol.com.br/?p=4158 Luciano Nagel

Pelotas (RS) A rotina dos tropeiros gaúchos, dos negros escravizados e suas tradições pode ser conhecida na rota das charqueadas de Pelotas, a 262 km de Porto Alegre, no sul do estado. Além da produção de doces, que coloca a cidade em destaque do país, Pelotas reúne casarões antigos do século 19 que preservam parte da história do charque (carne bovina seca e salgada) do Rio Grande do Sul.

As charqueadas eram o conjunto de imóveis onde se produzia o charque, muito consumido pelos gaúchos até os tempos atuais. A 15 minutos do centro de Pelotas, o conjunto de casarões, todos em estilo colonial, fica às margens do arroio Pelotas. Parte foi convertida em pousadas e museus.

Charqueada Boa Vista, em Pelotas (RS)

Eram nesses casarões que os tropeiros conduziam o rebanho de gado e abatiam o animal. Do boi era tirado o couro onde era feito a ‘’pelota’’, que era uma pequena embarcação de vara de corticeira (árvore) forrada de couro usada na travessia do arroio (córrego).

Nessa embarcação, puxada a nado por um escravo (que segurava as cordas pela boca), era levado o charque ou, em certa ocasião, até mesmo o patrão, esposa ou filhos para o outro lado da margem do rio. Daí que surge o nome da cidade de Pelotas.

Do gado, se aproveitava além do couro, o pó dos ossos que eram utilizados para fazer fertilizante, o sangue para gelatina e os chifres para várias utilidades como a confecção de pentes e botões, por exemplo.

Já a carne do boi era cortada em mantas, salgada e posteriormente penduradas em varais que ficavam expostas ao sol durante dias até desidratar totalmente. Todo esse processo era exercido por escravos e tinha como objetivo conservar o produto para a comercialização que era vendido para a região central e norte do Brasil, principalmente para a alimentação deles.

Atualmente, a região das charqueadas pode ser visitada pelos turistas. Entre os casarões que estão de portas abertas estão a charqueada Santa Rita, local tornado pousada que mantém a estrutura original de 1826. Próximo ao casarão, há um pequeno museu que resgata a história do charque.

Ao lado da Santa Rita, há outra construção, a charqueada São João, que já serviu de cenário para a gravação da minissérie brasileira ‘’A Casa das Sete Mulheres’’ e o filme ‘’O tempo e o vento’’.

O casarão construído entre 1807 e 1810 ainda conserva o esplendor da época e atualmente é um museu aberto ao público desde o ano 2000. Com guia local, o turista conhece a história do ciclo do charque, o período de escravidão, a rotina dos tropeiros e dos charqueiros.

No local, o turista pode ver os utensílios domésticos que eram usados para a produção do charque, como a pá de sal, que era utilizada pelos escravos para jogar o sal em cima das mantas de carne, as facas (punhais) que serviam para degolar o boi após levar uma marretada na cabeça e ser ferido com lanças nas pernas, além dos ganchos (de ferro), onde os pedaços de carne bovina eram pendurados para depois serem cortados em mantas e posteriormente expostos ao sol.

Parte dos instrumentos usados desde o final do século 19 para produção do charque

A preparação do charque, naquela época, era feita de forma rudimentar: os bois eram mortos a céu aberto, no pátio das estâncias e a secagem da carne era feita ao ar livre.

Não muito longe da São João, fica a charqueada Costa do Abolengo. O local, pouco antes da pandemia do coronavírus, era ponto de festas eletrônicas frequentadas por muitos estudantes universitários e jovens em geral.

Charqueada Costa do Abolengo, na rota das charqueadas, em Pelotas (RS)

Agora, em momento pandêmico, a área está aberta para visitação de famílias com passeio a cavalo, quadras de futebol e tênis, além de cadeiras relaxantes à beira do arroio que são convidativas para o descanso ou uma boa leitura de um livro. O projeto é que o casarão de paredes brancas e janelões verdes se torne em breve uma pousada.

Também na região está a charqueada Boa Vista, construída em 1811. O espaço, nos tempos atuais, é destinado a realização de eventos, como festas de casamentos, formaturas e batizados. Quem visita a mansão ainda tem a oportunidade de tomar um café colonial, fazer um piquenique ou almoçar com a família mediante agendamento prévio.

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‘Parrilla’, o churrasco tradicional da Argentina e Uruguai, se populariza no RS https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2019/04/24/parrilla-o-churrasco-tradicional-da-argentina-e-uruguai-se-populariza-no-rs/ https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2019/04/24/parrilla-o-churrasco-tradicional-da-argentina-e-uruguai-se-populariza-no-rs/#respond Wed, 24 Apr 2019 12:17:35 +0000 https://brasil.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/parrilada-320x213.jpeg https://brasil.blogfolha.uol.com.br/?p=3868 Paula Sperb

PORTO ALEGRE Comida típica do Rio Grande do Sul, com direito a data no calendário celebrada em 24 de abril, o churrasco preparado ao modo gaúcho (no espeto) tem ganhado um concorrente no estado: a parrilla (na grelha), como é chamado o assado tradicional na Argentina e no Uruguai.

A parrilla (pronuncia-se “parrija”, com o sotaque do espanhol falado nos arredores do Rio da Prata) tem conquistado adeptos não apenas entre os gaúchos, mas também em Santa Catarina e São Paulo, explica Douglas Nunes, 34, parrillero.

Nunes estudou na Escola Argentina de Parrilleros, em Buenos Aires, e está à frente do restaurante La Bodega, especializado no prato, na cidade de São Gabriel, a cerca de 300km de Porto Alegre, na região da campanha.

Douglas Nunes, de 34 anos, parrillero e organizador do I Concurso de Parrilla, em São Gabriel, na campanha gaúcha

São Gabriel fica em uma área considerada fronteiriça e foi a capital da “República Riograndense” durante a Revolução Farroupilha, em 1840. Essa proximidade com os países vizinhos colabora para a popularização da parrilla em território onde o churrasco predomina, explica Nunes.

“A resistência à parrilla não existe mais. Até pouco tempo o pessoal tinha desconfiança. Eram acostumados a salgar com sal grosso e deixar descansar antes de espetar. Quando viam a gente colocar sem sal na grelha e depois usando sal fino, questionavam se daria certo. Mas quando o pessoal experimenta, a resistência se torna curiosidade e querem aprender. Atualmente conheço pouca gente que assa no espeto, é mais no sistema de parrilla”, conta Nunes à *Folha*.

A principal diferença entre o churrasco gaúcho e a parrilla é a forma de assar. Enquanto o primeiro é preparado com carne espetada, o segundo é na grelha. “Não machucamos carne, não furamos. A gente tenta manipular a carne o menos possível”, explica o parillero.

Outra característica que distingue as duas formas de preparo é a fonte de calor. No churrasco há labaredas de carvão ou lenha. Já a parrilla conta apenas com a brasa. De acordo com Nunes, a brasa garante um cozimento mais uniforme de toda a carne. O churrasco, por sua vez, rende a famosa “casquinha”, consumida primeiro. Normalmente, a carne volta para o fogo para continuar o preparo do que seria a parte interna.

Participantes do I Concurso de Parrilla, organizado em São Gabriel,

A fama da parrilla em São Gabriel rendeu até mesmo um concurso no estilo “Master Chef”, o popular reality show de culinária. Em março deste ano, ocorreu o 1º Concurso de Parrilleros com oito equipes vindas de lugares como Uruguai e das cidades gaúchas de Santa do Livramento, Santa Maria e Santiago.

As equipes eram avaliadas por quesitos como ponto da carne, apresentação do prato, pontualidade, organização, comportamento e sabor. “Queríamos ver a criatividade e ficamos surpresos com a qualidade dos pratos”, explica.

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Gaúcha negra lidera há dez anos casa no Acampamento Farroupilha https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2018/09/20/gaucha-negra-lidera-ha-dez-anos-casa-no-acampamento-farroupilha/ https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2018/09/20/gaucha-negra-lidera-ha-dez-anos-casa-no-acampamento-farroupilha/#respond Thu, 20 Sep 2018 12:00:01 +0000 https://brasil.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/mocambo2-320x213.jpg https://brasil.blogfolha.uol.com.br/?p=3707 Fernanda Canofre

PORTO ALEGRE Quando aprendeu sobre a Guerra de Farrapos (1835-1845) na escola, Elaine Rodrigues Espíndola, 71, não ouviu falar dos Lanceiros Negros. Era a avó quem contava sobre a história que o Rio Grande do Sul esqueceu. O pelotão de negros escravizados foi à luta contra o Império, com a promessa de liberdade, mas acabou traído e chacinado numa emboscada preparada em acordo entre os dois lados da guerra, no Massacre de Porongos.

A avó dizia que Elaine tinha que aprender a ler e a escrever para passar essa e outras histórias adiante. Ela, que não sabia, usava o dedo para assinar. A mãe de Elaine mal riscava o próprio nome. A trisavó e a bisavó tinham um ditado: a felicidade é uma botina velha, confortável para os pés que tinham de caminhar, e um jornal sem letras, só de figuras, onde elas pudessem entender as notícias.

Nascida em Porto Alegre, Elaine, a quinta geração, virou professora e há dez anos é a patroa do único piquete –espécie de casa tradicional– que resgata a história dos negros gaúchos no Acampamento Farroupilha, erguido todos os anos em Porto Alegre, na época em que o estado celebra a revolta. A Guerra de Farrapos é relembrada todos os anos neste 20 de setembro.

Elaine, 71, há dez anos é patroa do piquete que resgata a história dos negros gaúchos no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. Crédito: Sandra Veroneze / MTG

Para celebrar a data, cerca de 353 piquetes recebem uma média de um milhão de visitantes, acampados durante duas semanas no Parque Harmonia, na região do Centro Histórico. A Revolta é relembrada todos os anos neste dia de setembro, o mesmo que em 1835 viu as tropas lideradas por Bento Gonçalves tomarem Porto Alegre. Os rebeldes reivindicavam melhores condições para comercialização da carne produzida no estado.

“[Os Lanceiros] estavam numa guerra que não era deles. Se isso não foi dito, não foi dito pelo vencedor, mas quem perdeu conseguiu fazer com que essa história chegasse aqui”, diz Elaine. “Quem do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) nunca recebeu uma benzedura, nunca foi apresentado à lua, nunca teve uma dor de cabeça e a rezadeira resolveu?”.

Ligado à associação de moradores da Cidade Baixa e arredores, região onde historicamente vivia a população negra em Porto Alegre, “O Mocambo” foi uma ideia do marido dela, Claudio. Nascido em Pelotas, no sul do estado, ele cresceu com a cultura do campo, mas lembrando o passado dos ancestrais escravizados nas fazendas que produziam charque. Quando faleceu, Elaine o substituiu na patronagem para seguir o sonho dele.

A decoração, diferente dos piquetes vizinhos, é uma ode à cultura africana que aprenderam com seus ancestrais. As paredes são decoradas com chás, estátua de São Jorge, dentes de alho, referências à tradição alimentar e aos costumes.

A Guerra de Farrapos foi uma das tantas revoltas que aconteceram no país no século 19. Historiador da Universidade de Passo Fundo e um dos maiores especialistas em história do estado e da escravidão gaúcha, Mário Maestri afirma que ela não teve “nada de excepcional”, foi conservadora e esteve sob controle da elite durante todo o tempo.

Muitos senhores enviavam os escravos para lutar, para manter seus filhos em casa. A promessa era liberdade ao fim da guerra, o que não aconteceu. Aqueles que não morreram na emboscada de Porongos, nem escaparam para quilombos e para o Uruguai durante os 10 anos de conflito, foram enviados ao Rio de Janeiro, onde seguiram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois.

“[Essa questão] vai contra a visão do mito fundador do estado, de uma produção sem trabalho [pesado], pastoril, sem luta de classes, onde o patrão trabalhava junto aos empregados. Nisso, o negro tem que desaparecer, o cativo campeiro tem que desaparecer, para dizer que trabalho escravo só existia nas charqueadas e, um pouco, nas cidades”, diz Maestri.

No último fim de semana, a relação histórica do estado com o período da escravidão virou centro de polêmica. Um dos piquetes do Acampamento recriou uma senzala, com manequins negros acorrentados ao tronco. A representação, que não tinha autorização do MTG, foi criticada por representantes de vários movimentos.

A reunião para resolver a questão aconteceu dentro do Mocambo de Elaine. Para o presidente do MTG, Nairo Callegaro, o episódio deixou de lição que o movimento tradicionalista precisa aprender a lidar melhor com o passado dos negros gaúchos. A ideia agora é criar um departamento de pesquisas que ajude a contextualizar histórias esquecidas do estado.

“Quando terminou a guerra teve acordo, o território foi reintegrado ao Império e voltou a seguir as leis deles. A escravidão imperava, a promessa de liberdade vinha dessa República rio-grandense que durou quase 10 anos, onde os negros seriam livres, mas que, no final, não logrou êxito”, afirma ele. “[A reunião] nos abriu uma porta sobre como tratar dessas questões e como os negros enxergam a própria História. Essa questão é muito palpitante na sociedade brasileira como um todo, temos que perder o receio de tratar disso”. 

Em 2004, quando chegaram ao local, Elaine lembra de ter causado um estranhamento aos frequentadores de sempre do acampamento. “Mas, assim como o MTG não quer perder raízes, nós também não queremos perder as nossas. Eu sou afro-gaúcha, uso essa pele, desde que eu nasci, 24 horas por dia”.

 

 

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Iracema, 53, a índia kaigang parteira do RS https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2016/10/05/iracema-53-a-india-kaigang-parteira-do-rio-grande-do-sul/ https://brasil.blogfolha.uol.com.br/2016/10/05/iracema-53-a-india-kaigang-parteira-do-rio-grande-do-sul/#respond Wed, 05 Oct 2016 12:00:17 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://brasil.blogfolha.uol.com.br/?p=3128

FERNANDA CANOFRE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PORTO ALEGRE

A primeira vez em que viu uma criança chegar ao mundo, Iracema tinha cinco anos. Sua avó era a kuiã –nome da etnia kaingang para curandeiros– da região e estava de sobreaviso para a grávida da aldeia que poderia entrar em trabalho de parto a qualquer momento, naquela madrugada. Quando bateram à porta da casa, Iracema lembra da avó agarrando suas coisas e ajeitando o cesto nas costas, onde a colocava, para irem trabalhar.

Desde antes de saber caminhar, Iracema vivia com a avó. Foi ela quem a amamentou e criou depois que uma cobra entrou na casa e fez o leite da mãe da menina secar com o susto.

Na reserva indígena de Serrinha, entre Nonoai e Ronda Alta, região norte do Rio Grande do Sul, era a avó quem manejava as ervas medicinais e trazia gente ao mundo. Entre os sete irmãos e as seis irmãs, Iracema foi a única que nasceu com a mesma vocação.

“Ela era nossa médica, era a kuiã. Ela não cursou faculdade, era um dom de Deus. Ela conhecia plantas, sabia sobre os remédios, como fazer as massagens”, lembra Iracema, sentada no sofá de sua casa em Porto Alegre.

A parteira kaigang Iracema, 563, com o marido, cacique João Padilha, na casa da família, na periferia de Porto Alegre - Crédito: Fernanda Canofre
A parteira kaigang Iracema, 53, com o marido, cacique João Padilha, na casa da família, na periferia de Porto Alegre – Crédito: Fernanda Canofre

Quando saiu da aldeia de Nonoai, aos 18 anos, Iracema partiu para levar seus conhecimentos de kuiã para outros lugares. Acabou ficando um tempo no interior do Paraná, onde ela e uma companheira guarani atendiam grávidas em terras indígenas, com apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio) e ensinavam técnicas de parto indígenas para enfermeiras.

Depois de se casar e voltar ao Rio Grande do Sul, os atendimentos passaram a ser em qualquer lugar que a chamassem.

Aos 53 anos de idade, já perdeu as contas de quantas crianças ajudou a nascer. “Nem sei mais, mas contando tudo passa de 100”, diz ela.

Como nascem os kaingangues

Os trabalhos da medicina kaingang com gestantes são semelhantes aos de outras etnias indígenas.

A partir dos quatro meses, quando acreditam que a criança está decidida a vir ao mundo, os kuiãs acompanham as mães com banhos mensais de vẽnh-kagta –as ervas colhidas no mato– chás, massagens e benzimentos.

Para eles, é isso que ajuda a preparar o corpo da mulher para o parto. Três tipos de ervas são usados no tratamento: uma só para fortalecer os músculos e a pele, outra para afastar as energias ruins e a terceira para equilibrar o organismo da mãe.

Iracema nasceu assim, como a mãe, a avó e gerações de kaingangues antes delas, e teve os oito filhos –os cinco que sobreviveram e os três que perdeu– todos de parto normal.

A filha Audisseia, 23, no entanto, acabou optando por ir a um hospital quando chegou a hora de seu parto. Com 18 anos na época, cerca de 1,55m de altura e pouco mais de 40 kg, os médicos calcularam que seria arriscado para a jovem ter a bebê de 3,7 kg com um parto normal e agendaram uma cesariana.

Iracema não concordou. Depois de massagear a barriga da filha, ela conta que sabia que a netinha estava pronta para vir ao mundo sem que ninguém cortasse a barriga da mãe.

“Nós que fazemos partos, temos ainda muitos espinhos dos médicos”, diz ela. No hospital, não permitiram que Iracema desse os chás ou fizesse as massagens na filha. As duas entraram em um banheiro e seguiram o ritual que ela aprendera com a avó, em Nonoai, às escondidas.

A parteira kaigang Iracema, 53, com a filha Audisseia, 23 - Crédito: Fernanda Canofre
A parteira kaigang Iracema, 53, com a filha Audisseia, 23 – Crédito: Fernanda Canofre

Na hora do parto, ela conta que pediu um pouco mais de paciência ao médico. “O médico queria fazer cesariana, o quarto estava pronto, tudo pronto. Ele me obrigou a assinar um documento, se a bebê nascesse morta, eu seria a culpada. Eu disse que não ia nascer morta, que ia nascer chorando. E dito e feito: nasceu e chorou”, lembra a mulher com uma fala mansa.

Os tempos, no entanto, acabaram mudando algumas das tradições. O marido de Iracema, Cacique João Padilha, conta que nasceu na beira de uma sanga, pelas mãos do pai e da mãe. Lá, o casal deu banho no bebê, cortou o cordão umbilical e o prendeu com um bico de pedra preparado para evitar infecções.

As três irmãs de João também nasceram assim, na terra indígena perto de Soledade, onde o kuiã-parteiro era o seu avô.

Pai e o ‘parto humanizado’ dos kaigang

A participação dos homens nos partos é um traço da cultura kaingang. Quando a mãe começa a fazer força para empurrar o bebê, cabe a eles a função de apoiá-las pelas costas e segurá-las pelos braços.

Se a mãe enfrenta dificuldades no trabalho de parto, é o pai quem deve ajudar com as simpatias para desbloquear o caminho do filho que vem. Iracema conta que as simpatias para “tirar os obstáculos do parto” nunca falharam.

Ela lembra que certa vez, ainda no Paraná, um dos partos que acompanhou se arrastou por horas e a criança não vinha. A kuiã chamou o pai para um canto e pediu que arrumasse um porongo –espécie de cabaça, comum no sul, usada para fazer as cuias de chimarrão.

Seguindo a simpatia, o pai deveria dar voltas ao redor da casa onde a mãe estava, soprando o fumo preparado dentro do porongo e cantando versos em kaingang. Os tropeços que ele dá enquanto caminha, durante o ritual, segundo a kuiã, representam os obstáculos que impedem o bebê de vir ao mundo sendo derrubados. “E funciona, já vi funcionar em uns quantos partos. É muito bom”, diz ela.

Porém, com o número de kuiãs diminuindo, muitos indígenas sem-terra vivendo fora de aldeias, os hábitos alimentares mudando, o marido do Iracema reconhece que os antigos costumes já não são o bastante para garantir a segurança de mãe e bebê. “Às vezes, nem as ervas estão tendo os mesmos efeitos que tinham no passado. Tudo isso é uma dificuldade”, diz Padilha.

Atualmente, a dificuldade financeira impede que a kuiã possa seguir exercendo a vocação de parteira como antes. “Outra dia, uma amiga guarani, a Guacira, me ligou à noite para ajudar em um parto. Mas era longe e depois que passa da meia-noite já não tem ônibus aqui. Nós até temos um carro, mas a gasolina é cara e se é longe…não tem como”, lamenta ela.

Este ano, Iracema só trabalhou em dois partos por causa das dificuldades. Um deles, em março, em uma comunidade quilombola da periferia de Porto Alegre; o outro de uma indígena, que vive em uma vila da cidade de São Leopoldo, a 30 minutos da capital.

Ela não esmorece. Sem encontrar nos filhos um kuiã para passar o que sabe, ela coloca esperanças em uma das netas. “Minha netinha de 7 anos foi me ajudar num benzimento outro dia e gostou. Acho que ela vai se interessar”, conta.

Em agosto, ela também Iracema estreou como professora de uma cadeira especial de graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao lado do marido e de mestres da cultura afrodescendente, chamada de Encontro de Saberes. Ela espera assim não deixar sua cultura morrer.

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